A presente recensão crítica foi escrita por Maria Emanuel Albergaria e publicada em julho de 2022 no Nº14 da Revista Midas – Museu e Estudos Interdisciplinares. Diz respeito ao livro “Museu e Escolas: as relações pedagógicas e o papel dos jovens”, de Marta Ornelas, publicado pela Direção-Geral do Património Cultural em parceria com a Editora Caleidoscópio, em dezembro de 2020.

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O livro, Museus e Escolas: As Relações Pedagógicas e o Papel dos Jovens, refere-se à tese de doutoramento de Marta Ornelas, em “Artes y Educación”, apresentada à Faculdad de Bellas Artes, Universitat de Barcelona, em 2016. Este trabalho expõe, interpreta, questiona, de forma eloquente, exaustiva, cuidada e bem fundamentada, as relações entre museus de arte contemporânea, a escola e os jovens. A autora parte da convicção, sustentada teoricamente, que o relacionamento dos jovens com as obras de arte nos museus pode potenciar a sua criatividade, o pensamento crítico e a cidadania ativa, competências essenciais para o século XXI.

Apesar deste potencial pedagógico, a sua experiência enquanto professora de Educação Visual e organizadora de visitas de estudo escolares aos museus levaram-na à constatação (na maior parte das vezes), partilhada com os alunos, da inadequação do discurso dos museus, da infantilidade de muitas das atividades propostas e da falta de relação de continuidade do museu em relação à escola, questões que motivaram esta tese.

Esta pesquisa apresenta um sólido suporte teórico, com exaustivas referências que acompanham toda a investigação, orientada por Fernando Hernandez1. Marta Ornelas desenvolve o seu trabalho de pesquisa de forma clara e empática, em torno de quatro conceitos-chave: estilo docente; relações pedagógicas; arte e conhecimento artístico, e estratégias de aprendizagem.

A leitura desta obra estimula ao questionamento e à reflexão em torno da pergunta base de investigação: como se constroem relações pedagógicas entre escolas e museus de arte contemporânea? Por sua vez, esta questão desdobra-se em nove perguntas mais específicas às quais a autora vai respondendo ao longo do desenvolvimento da investigação, chegando a conclusões pertinentes e úteis para implementar transformações no relacionamento e nas práticas pedagógicas nas escolas, nos museus, entre a escolas e os museus, evidenciando a importância do papel ativo que deve ser atribuído aos jovens em todos estes processos.

Além da «Introdução», o livro apresenta-se em torno de cinco partes: «Perspetivas Teóricas e Conceitos-Chave» (I); «Abordagem Metodológica» (II); «Estudo de Casos» (III); «Processo de Análise das Evidências» (IV); «Conclusões» (V), finalizando com um «Post Scriptum», onde apresenta uma proposta educativa concreta, emergente da investigação.

Trata-se de uma abordagem de investigação qualitativa, que requer sensibilidade para o estudo empírico dos problemas e reflexividade, ou seja, não nega a subjetividade do investigador, em que a empatia e o envolvimento com o objeto de estudo, ou mesmo a “paixão” por este, se tornam ingredientes propulsores. «Se as perguntas de investigação versam sobre pessoas e as suas relações com outras pessoas (…) e com objetos (…), significa que versam sobre algo que compreende aspetos muito particulares e profundamente subjetivos» (p. 21).

Marta Ornelas assume uma visão plural, pós-moderna da realidade social, atribuindo às múltiplas narrativas e ao olhar crítico o poder de possibilitarem a criação de novos significados sobre a sociedade, corrente do construtivismo social, que põe em causa o mito da verdade universal e absoluta, que muito tem afetado a visão e a intervenção sociocultural, especialmente no que toca à educação.

Para os estudos de caso, a investigadora selecionou três escolas da área metropolitana de Lisboa (Escola Básica dos Eucaliptos, Colégio dos Plátanos e Escola Secundária de Vergílio Ferreira [nomes fictícios]), três museus de arte contemporânea no mesmo território (Museu Coleção Berardo, Casa das Histórias Paula Rego e Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado) e quatro turmas do 3.º ciclo do ensino básico, que realizaram quatro visitas de estudo, a partir da disciplina de Educação Visual, organizadas por quatro professoras dessa disciplina, que foram guiadas por quatro educadoras dos serviços de educação dos museus selecionados.

Relativamente às abordagens metodológicas, a investigadora analisa os documentos estruturantes das instituições em foco, como os projetos educativos das escolas e os programas de cada serviço de educação, parte para o terreno como observadora participante, recolhe evidências através de entrevistas e de debates em focus groups com vários intervenientes, regista informação em diário de campo, em gravações áudio e através de registos fotográficos, respeitando os procedimentos éticos inerentes a este tipo de pesquisa.

Todos os casos observados são descritos nas suas diversas etapas, desde a complicada logística de preparação das visitas de estudo nas escolas, à realização das mesmas nos museus, refere os percursos, as obras de arte abordadas nas visitas, o discurso utilizado pelas educadoras e as interpelações dos jovens. Posteriormente, debate com os alunos de cada turma, e com as professoras, as suas opiniões e as suas visões sobre as visitas e sobre as obras, acompanha os trabalhos subsequentes que são desenvolvidos nas aulas de Educação Visual. Colige novas propostas alternativas às visitas aos museus e ao desenvolvimento de trabalhos na escola através do debate e das sugestões dos jovens.

Esta investigação permite aferir a estrutura ainda rígida da escola e do museu, a relação do saber com o poder, parte de um sistema de controle social, vantajoso para os grupos sociais dominantes. A predominância de um discurso da história da arte ancorado numa macro narrativa ocidental, centrada nos grandes feitos, elitista, omitindo outras narrativas ou atribuindo-lhes um papel secundário.

Outro aspeto relevante deste trabalho, nos casos de estudo analisados, é a constatação, relativamente ao discurso sobre arte, da hegemonia do museu face ao da escola, onde as professoras se tornam “invisíveis”, apesar de poderem ser elas próprias artistas, ou experientes em práticas pedagógicas enriquecedoras para o museu, estes fatores são pouco valorizados pelo museu e também pela escola. Por sua vez, na estrutura do museu, as educadoras estão numa posição inferior, não sendo implicadas nos projetos curatoriais, desenvolvendo o seu discurso em torno da perspetiva dos curadores e dos diretores, na maioria das vezes, homens.

Na linguagem que usa, Marta Ornelas, assume a predominância do feminino, designando de educadoras, a quem realiza as visitas no museu, e de professoras, às docentes de Educação Visual, justificando serem estas funções exercidas na maioria das vezes por mulheres, e concretamente nos quatro casos de estudo.

Ao longo deste livro vamos assistindo ao desenrolar da investigação, a uma descrição exaustiva dos casos de estudo, das referências teóricas, da reflexão clara e eficaz que a investigadora realiza, tornando evidentes e necessárias as conclusões a que chega. Marta Ornelas usa a disciplina de Educação Visual e o discurso dos museus de arte contemporânea analisados, para explanar e evidenciar a urgência de rutura de paradigma, a emergência de um maior envolvimento, participação e relação entre os intervenientes, especialmente os jovens.

A realidade que Marta Ornelas nos expõe, através destes casos, é uma realidade repleta de hierarquias, faltas de diálogo e de debate. Na escola sobressai a burocracia, o desfasamento entre o discurso teórico explanado nos documentos e a prática, o primado de certas disciplinas sobre outras, especialmente a Matemática e o Português (escudado pelos exames) a rigidez das regras, o desconforto ou inadequação dos espaços físicos, nas salas de aula a disposição do mobiliário, a ausência de interdisciplinaridade; a falta de espaços de diálogo, de debate de ideias, de experimentação e de convívio, a pouca voz dos alunos, a minoração das expressões artísticas face a outras áreas do currículo. Na preparação das visitas de estudo, sobressai a burocracia e a complicação da logística, que originam um fraco incentivo à sua realização; durante as visitas, a preocupação dos professores em disciplinar os alunos; na formação dos professores o pouco espaço/tempo relativamente a conteúdos de arte contemporânea.

No museu, o primado dos curadores relativamente às educadoras, a falta de partilha curatorial nas exposições, a precariedade de muitos profissionais educadores de museus, apesar da sua formação superior, as equipas diminutas e os poucos recursos; um discurso centrado na forma e nas técnicas e pouco nos significados; a rigidez das regras no museu, a não relação com a escola para além da visita, a dificuldade do envolvimento dos visitantes com as obras, o que contradiz os pressupostos da arte contemporânea, atividades infantilizadas e pouco consequentes; uma postura top-down do museu relativamente à escola.

A descrição, a análise e as conclusões destes casos de estudo indicam caminhos para a mudança que vão de encontro a novos modelos de comunicação e de interação dentro dos museus, dentro das escolas e nas relações entre ambos. Sendo fulcral que esta comunicação se dê de forma horizontal, com debate e partilha, especialmente com a participação dos jovens, auscultando as suas dúvidas e anseios. Um discurso mais acessível no museu, professores com mais formação e atualização relativamente às expressões artísticas contemporâneas, escolas menos burocráticas e com mais espaço para a experimentação. E se a escola vai ao museu, o museu também pode ir à escola, acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos após a visita, potenciar todo o capital pedagógico que pode ocorrer neste relacionamento, promover exposições da escola no museu e do museu na escola, encontros com artistas, entre outras propostas. Relativamente a ambas as instituições, os jovens consideram importante quebrar a rigidez das regras, haver mais espaço de conforto e de participação, mais debate de ideias, mais exploração dos significados das obras de arte e maior ligação à vida real e às grandes questões do mundo contemporâneo.

No «Post Scriptum», Marta Ornelas expõe uma ação educativa emergente da investigação, uma proposta de trabalho realizada por uma das turmas abordadas nos estudos de caso, a sua concretização comprovou a importância do trabalho colaborativo e a possibilidade de criação de novas relações entre escola e museu através do papel dos jovens.

19Apenas se ressalva que os quatro estudos de caso foram realizados em 2012-2013, sendo que entretanto tanto na escola como no museu há tendências que apontam mudanças: mais permeabilidade, novos documentos legais, mais trabalho colaborativo, interdisciplinar e em rede, começam também a ouvir-se novas vozes, nomeadamente as dos jovens. Por outro lado, este trabalho teria vantagens de comunicação, relativamente aos seus principais pressupostos, se fosse desdobrado em vários cadernos, teoricamente menos densos e por isso mais acessíveis ao público em geral.

Globalmente, este livro é um contributo importante para o pensamento em torno das mudanças nas instituições educativas e culturais, fornecendo boas indicações para futuras colaborações e para novas políticas. Aponta questões essenciais à mudança e adequação à sociedade pós-moderna: maior flexibilidade, mais partilha, mais debate, mais questionamento, mais trabalho colaborativo, menos rigidez e hierarquia, mais prazer. Um estilo docente mais delegante e estratégias de aprendizagem mais motivadoras podem criar relações pedagógicas com a arte e com o conhecimento artístico, levando os jovens ao pensamento crítico, a novas visões e a uma cidadania mais ativa.

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A recensão originalmente publicada pode ser consultada aqui